Neste pungente romance autobiográfico, acompanhamos uma das mais relevantes vozes da literatura russa contemporânea, Oksana Vassiákina, retornar a sua cidade natal para enterrar as cinzas da mãe que acabara de morrer de câncer de mama. Durante o trajeto de mais de 5 mil quilômetros de Moscou a Ust-Ilimsk, cidadezinha na região siberiana de Irkutsk, a dolorosa jornada suscita detalhes da relação entre mãe e filha. Mais que isso, retraça a genealogia de uma família matriarcal ferida pelo excesso de trabalho, álcool, abandono e violência masculina, e cria um retrato poderoso da Rússia pós-União Soviética.Cheia de camadas, esta primeira parte de uma trilogia publicada em mais de dez países se estrutura, segundo a narradora, como se ela lançasse uma pedra na água, e do cerne da urna funerária materna eclodissem círculos de outras histórias, paralelas e intrincadas. Um exemplo disso é que ao relembrar o corpo da mãe ela deriva para uma análise da própria identidade sexual e de seus relacionamentos amorosos. E do fato de ser lésbica desponta o militarismo russo e a homofobia que, vale dizer, desde 2022 é institucionalizada no país pela lei antipropaganda lgbtqia+.Em Ferida, interessa também a Vassiákina investigar o que é ser mulher, e de que maneira essa forma de existir está conectada ao seu fazer literário e ao luto. Para tanto, ela mescla poemas elegíacos e ensaios à narrativa da viagem, valendo-se do diálogo com outras escritoras, filósofas e artistas plásticas feministas, tais como Hélène Cixous, Julia Kristeva, Louise Bourgeois, Monique Wittig, entre outras.Hipnótico e profundo, Ferida é um verdadeiro mergulho numa consciência em busca da elaboração da dor e de uma voz que soe adequada para comunicar o que até então não fora enunciado em sua vida: o amor pela mãe.