Machado de Assis volta e meia encontrou no mundo animal a inspiração para contos e crônicas. Alguns desses textos, publicados num intervalo de quase quatro décadas, estão reunidos de forma inédita em Na arca: Machado de Assis e os animais, edição especial organizada por Fabiane Secches e Maria Esther Maciel e ilustrada por Gê Viana.Nesta coletânea, o cão, o burro, o gato, o rato, o canário e diversos outros bichos, que chamavam a atenção do escritor naquele Rio de Janeiro da segunda metade do século 19, são postos em cena como personagens principais e sob enfoques inusitados. Com muito de presciência, Machado de Assis "abriu os caminhos para que fosse delineada [.] toda uma linhagem de escritores atentos não apenas à importância das vidas não humanas e à complexidade das conexões entre homens e animais, como também à necessidade de se reinventar a própria noção de humanidade", como afirma Maria Esther Maciel no posfácio do livro.Arguto observador de sua época, que experimentava o avanço das ciências, o triunfo do racionalismo antropocêntrico e a revolução darwinista, o escritor dedicou muitas páginas ao registro da situação dos animais na sociedade dos homens. Assim, por exemplo, fez o elogio do vegetarianismo, registrou com frequência a crueldade das vivissecções realizadas nos laboratórios científicos, indignou-se com a exploração da força animal no trabalho e manifestou simpatia pelas sociedades protetoras de animais.Sem função edificante, como nas fábulas tradicionais, os bichos de Machado se expressam como se pudessem empregar a linguagem verbal e os saberes científicos da época. Assim é, por exemplo, no conto "Ideias de canário", em que o pássaro questiona o olhar humano sobre a natureza, e na crônica "Conversa de burros", em que uma dupla de puxadores de bonde trava um diálogo filosófico sobre a exploração imposta pelos homens. Os cães também marcam presença em outros textos da coletânea, como "Miss Dollar" e "Um cão de lata ao rabo", assim como os felinos, que aparecem também na simpática carta escrita por Machado colocando-se na pele de um gatinho preto.Como resumiu Maria Esther Maciel: "Na arca de papel machadiana, os bichos - com seus saberes, sentimentos, pensamentos, agruras e indignações - circulam soltos pelas páginas, desafiando a própria ideia de confinamento e desestabilizando a suposta superioridade do homo sapiens em relação a criaturas de outras espécies".