O livro de João em 101 versículos, de J. L. Rocha do Nascimento, é um ousado e original conjunto de contos curtos que explora, com mordacidade e lirismo erótico, a jornada de João, figura arquetípica que atravessa o tempo e a carne. Da infância à velhice, o protagonista vai se transformando de voyeur inocente a um narrador sádico, terno, cínico, ou melancólico, sempre em cena com mulheres cuja voz também se ergue, por vezes, em murmúrio, por vezes, em explosão. A linguagem crua e inventiva flerta com o escatológico, mas alcança momentos de alto teor poético, político e filosófico, combina realismo brutal com o lirismo, tudo isso através do uso eficaz das figuras de linguagem, como a ironia e o simbolismo, o que pinta um retrato pertubador do anti-herói mesmo em cenários cotidianos, mundanos e distorcidos. As vozes femininas que cruzam o livro, cúmplices, sedentas, sábias ou vingativas, não são objetos, mas sujeitos da experiência erótica, afetiva e existencial. Combinando humor, paródia, crítica de costumes e referências cultas (de Machado a Drummond, de Rubem Fonseca a Heráclito), o autor cria uma narrativa única que remete tanto aos contos de Dalton Trevisan quanto à concisão brutal de Hilda Hilst, com pitadas da saliência gozosa de Reinaldo Moraes.