Em 2003, uma semana antes de começar um tratamento de câncer de mama, Annie Ernaux começa um relacionamento com o fotógrafo e jornalista Marc Marie, então recém-divorciado. Numa atmosfera que mescla o medo da morte com um forte impulso de vida, os dois passam a fotografar suas roupas abandonadas que foram pelos cômodos da casa antes do sexo. Dessas belas imagens - publicadas coloridas nesta edição -, cada um se propõe a escrever um texto sobre memória, desejo, doença, o poder da fotografia, a Guerra do Iraque que acabava de eclodir, a Bélgica da infância de Marie, e várias outras reflexões que se alternam com surpreendente sinergia entre os autores. Debruçando-se sobre as catorze fotografias feitas no decorrer daquele ano, Ernaux afirma que registrar tais vestígios de amor era como ter uma prova de que ainda estava viva. E diante da possibilidade da morte, ela passa a buscar uma forma literária que abarque toda sua biografia, a qual culminará em Os anos, sua obra magna escrita imediatamente depois deste O uso da foto. Diferente das descrições fotográficas dos outros livros da autora, feitas sobre retratos, aqui Annie e Marc partem da ausência. Porque, ainda que a inexistência de corpos remeta ao fim ocasionado pelo câncer, ela também potencializa o erotismo, sobretudo o daquele corpo que se transforma. Nessa espécie de diário do abandono ao prazer, cheio de intenção artística e reflexões originais sobre a fotografia, conhecemos uma fase decisiva da vida da vencedora do prêmio Nobel de literatura de 2022 e novas facetas do modo com que ela constrói seu projeto de escrita. "Não espero a vida me trazer temas, e sim organizações desconhecidas de escrita", afirma Ernaux. Assim, em meio a meias-calças, sapatos, roupas íntimas e lençóis embolados, nos fascinamos com uma literatura capaz de apreender com agudez momentos tão fugidios..