Cento e vinte dias, seiscentas paixões. Quatro meses de libertinagem, quatro classes de vícios. A cada dia, cinco modalidades, somando cento e cinquenta por mês. Para dar conta dessas cifras, uma comitiva formada por quarenta e seis pessoas, distribuídas em oito categorias distintas, das quais sete pertencem à classe dos súditos. Oito meninos, oito meninas e oito fodedores. Quatro criadas e seis cozinheiras. Quatro esposas. Quatro narradoras. Por fim, na classe dos senhores, os quatro libertinos que sempre merecem designação individualizada: Curval, Durcet, Blangis e o Bispo.A esses números - que apresentam ao leitor "a narrativa mais impura já escrita desde que o mundo existe" -, somam-se outros tantos que servem invariavelmente para precisar, com a maior exatidão possível, as atividades levadas a termo no castelo de Silling.(...)Vale lembrar que, assim como o sexo, os números são inequívocas fontes de prazer no mundo do deboche. Eliane Robert Moraes,do prefácio desta edição O romance que o leitor tem em mãos foi objeto de especial estima por parte do marquês de Sade. Tendo dado por perdido o rolo em que o escrevera, ao ser retirado às pressas da Bastilha, às vésperas da Revolução, o autor morreu sem saber que o manuscrito seria mais tarde recuperado, e, finalmente, publicado no início do século XX. A trágica circunstância desse desaparecimento o levou a verter "lágrimas de sangue" conforme suas próprias palavras.Por esse apreço do criador pela criatura, pode-se deduzir o quanto dele está aqui impresso com todas as letras, no limite do fôlego. Maurice Heine, um dos grandes divulgadores da obra sadiana, chegou a afirmar que Sade tentou remediar essa perda em todos os seus escritos posteriores. Ou seja: os despudorados fantasmas de 120 dias de Sodoma rondaram-lhe a mente e a pena até o fim de sua vida.Mas é com o próprio livro, esse "Decamerão" libertino, que o leitor vai se defrontar plenamente nessa nova versão brasileira, rigorosa e afinada com a escrita vertiginosa de seu autor. Um livro incomum, sem dúvida, de leitura perturbadora para muitos, cuja chave mestra talvez seja o humor. A bem da verdade, um humor negro, algo sombrio, genuinamente perverso, e, no limite, absurdo.Todavia, quem vencer as primeiras páginas e dobrar o cabo da tormenta ou desesperança de sua literatura, uma das mais radicais jamais escritas, irá por certo concordar com Georges Bataille. Para ele, o ato de ler Sade - ou melhor, o ato de o reler copiosamente, a